terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Um século depois

Do Sentimento Trágico da Vida - Miguel de Unamuno
Ed. Quarteto


Fotos e notas de Zim

Acabei de ler, nesta madrugada, o que acredito ser um dos livros mais importantes que já me passou pelas retinas, da autoria de um dos meus escritores preferidos, Miguel de Unamuno. Do Sentimento Trágico da Vida é a mais extensa explanação de cariz filosófico deste grande autor basco, e não posso dizer que foi abrir e não parar mais. Muito pelo contrário. Tenho-o há anos, e há anos comecei a sua primeira leitura, para depois a abandonar. Nos últimos meses voltei a pegar-lhe, sabia e sentia que tinha de lê-lo e que aquela falta de élan passado talvez mais não fosse do que uma preguiçosa resistência de me haver com a magnitude do que sabia ir encontrar. E, está claro, assim foi.
 
O problema que Unamuno coloca é eterno, e tão íntimo para mim como me parece ser tudo quanto escreve. A sensação de intimidade com escritores que nunca conheceremos, cuja vida não aconteceu durante a nossa passagem, cujo tempo não coincidiu exatamente com o nosso, mas em que tantas impressões recebem o acolhimento apaixonado do nosso ser (aí se provando a ausência de anacronia nas paixões), lembra-me o poema de Whitman na barrinha lateral. E de amizade se trata, não? Mas, dizia, o problema que coloca é eterno. O Homem vive na angústia de se saber finito, que é tanto mais aguda quanto sente uma absoluta necessidade de contrariar o seu fim. O Homem quer prolongar-se numa eternidade viva, consciente e descobridora, e o contraste entre a razão que sabe e o sentimento que quer gera a tragédia magna da nossa existência. Como enfrentá-la? Como ser? O que ser? E para quê?
 
Para mim, Do Sentimento Trágico da Vida é um belíssimo libelo contra o que o próprio autor chama de pedantismo da razão, e um testemunho, ainda que dentre o paroxismo da incerteza, da luta, da confusão, da probabilidade superficialmente mascarada de inverosimilhança (num Carnaval fatídico para os nossos corações), um testemunho de esperança, de apelo ao concreto, de gozo do espírito no concreto e de harmonia com o espírito. Tratar-se-á, nesse sentido, e ainda, de uma reabilitação das possibilidades filosóficas com a razão, contra a razão e para além da razão, sem amos e sem amarras. Miguel de Unamuno é um D. Quixote, como se assume, e quer ir, e sente que tem de ir para além das acomodatícias convenções do expectável pelo senso comum. É do senso incomum, da excecionalidade, do fulgor que individualiza e atesta a certidão de unicidade de cada um de nós, que aqui se trata. Um heroísmo estrénuo, uma guerra em que é vencedor quem quer. Mas não quem quer de qualquer forma. Vence quem quer por inteiro o todo, e o todo de si na totalidade, vence o herói que quer apaixonadamente, tragicamente, vitalmente, quixotescamente. Referindo-se à obra Obermann, de Sénancour, Unamuno faz suas as palavras do ensaísta e filósofo francês e apela-nos a considerar que, se de facto se concluir, no infortúnio e na pecha da realidade, que o nada, a finitude, a não eternidade é o que nos espera, ao menos que isso seja flagrantemente julgado como uma injustiça. Que simplesmente não o mereçamos pela nossa paixão, pelo afeto volitivo e bom com que nos conduzimos pela Terra.
 
É simplesmente uma maravilha podermos ler estes escritores majestosos, e que haja editoras, como a Quarteto, que nos possibilitem aceder a tais partes de nós. São partes de nós, leitor. Podem andar espalhadas, perdidas, encriptadas noutras línguas, mas são-nos também. E daí a vontade de partilhar, registar, tirar notas, as mil notinhas que podem ver acima, e que foram intercalando esta longa leitura.
 
A lista dos 50 livros (e outros mais...) de Tamborim Zim vai sendo atualizada à medida da paixão literária, e podem ver aqui qual é a nova menção - difícil!
 
Deixo algumas citações do livro de que hoje vos falo, e cuja leitura terminei exatamente um século depois de ter sido escrito, em 1912. Exorto-vos a que não percam a experiência de o ler. E, já agora, as restantes obras de Unamuno, que incluem romance, teatro, poesia e, fundamentalmente, uma poderosíssima demanda que permanecerá uma  imorredoura inspiração.
 
"Queremos não somente salvarmo-nos, mas também salvar o mundo do nada. E, para isto, Deus. Tal é a sua finalidade sentida. (...) Não é, pois, uma necessidade racional, mas sim angústia vital, o que nos leva a crer em Deus. E crer em Deus, é antes de tudo e sobretudo (...), sentir fome de Deus, fome de divindade, sentir a sua ausência e vazio, querer que Deus exista. E é querer salvar a finalidade humana do Universo."
 
"(...) lutemos conta o destino, mesmo que sem esperança de vitória; pelejemos contra ele, quixotescamente."
 
" (...) é da desesperação, e dela somente, que nasce a esperança heróica, a esperança absurda, a esperança louca."
 
"A minha conduta há-de ser a melhor prova, a prova moral do meu anseio supremo (...). Não há segurança e descanso - os que se podem encontrar nesta vida, essencialmente insegura e fatigante - a não ser numa conduta apaixonadamente boa."