terça-feira, 21 de agosto de 2012

Mais um belíssimo entrevistado: Prof. Carlos João Correia na Alegoria

Lembrai-vos, minhas miríades de leitores cândidos e ainda mais gentis, de vos ter falado de uma série de entrevistas que fiz anteriormente no Facebook a alguns dos meus amigos contactos? Já aqui deixara esta, tendo acrescentado outra entrevista, inédita, na Alegoria.

Hoje deixo-vos esta conversa deliciosa com o maravilhoso Prof. Carlos João Correia, professor de Filosofia na Faculdade de Letras de Lisboa, a quem muito agradeço ter-me autorizado a publicação aqui no blogzim. Docentes assim são o verdadeiro luxo de qualquer estabelecimento de ensino e é um privilégio encontrá-los no caminho.

Ora vejam:

Tamborim entrevista…Carlos João Correia


Professor de Filosofia


“(…) é crucial que eu percorra um longo caminho de auto-aceitação ou, se se preferir, de me tornar aquilo que sou. De algum modo, é uma demanda filosófica, pois se existe imperativo da filosofia é precisamente o "tornar-se aquilo que se é".
TZ - Professor Carlos João, muito obrigada por aceitar participar nesta FB série "Tamborim Entrevista"! A primeira pergunta que me tenta colocar-lhe é se considera que pode ser identificado, na actualidade, um conceito, ou rede de conceitos, ou palavra, ou pergunta para a qual a filosofia pensada, escrita e difundida nos dias de hoje convirja maioritariamente na sua demanda. E, se sim, qual ou quais?
CJ- Eu é que agradeço a atenção. No âmbito da filosofia cultivada no Ocidente é possível encontrar uma resposta muito precisa à sua questão.
A filosofia da mente constitui a principal interrogação do pensamento contemporâneo desde os anos 80.
Em torno das questões colocadas pela natureza da mente encontra-se uma rede de conceitos e de problemas: identidade pessoal; natureza da consciência; sentimento de si e o papel das emoções; qualia; perspectiva da primeira pessoa versus perspectiva objectiva, etc.
Em todos estes problemas joga-se uma reflexão sobre a natureza da mente que não se cinge apenas à esfera humana, mas que tem em consideração outras formas sencientes de vida.
TZ - Nessa perspectiva, podemos concluir que a filosofia está cada vez mais "psicologizada", quero dizer, muito próxima, em muitas frentes, do domínio da Psicologia? Ou será esta uma conclusão abusiva?
CJ- Por razões que se prendem com a história da Psicologia, é até o inverso que se está a passar... A Psicologia, no século XX, foi dominada por dois grandes modelos: a psicanálise e o behaviorismo. Ora, a questões da natureza da mente e da consciência, da perspectiva da primeira pessoa, etc., são problemas menores dessas duas interpretações psicológicas (se é que elas se podem mesmo colocar no behaviorismo). Nos últimos tempos - dado o impacto dos problemas levantados pela filosofia da mente - a psicologia tem-se aproximado da filosofia... Por mais estranho que possa parecer, discute-se muito mais as questões da mente e da consciência nos cursos de Filosofia do que nos de Psicologia. A meu ver, a Filosofia, ao tratar este tipo de problemas, não faz mais do que fazer justiça ao conhecido imperativo socrático: conhece-te a ti próprio!
TZ - A propósito do imperativo filosófico, quer o Professor responder ao Cioran, cujos silogismos ando a ler? (Mesmo não podendo este autor ser nosso amigo do FB...) Aqui vai: "Como é que alguém pode ser filósofo? Como é que se pode ter a ousadia de enfrentar o tempo, a beleza, Deus, e tudo o mais? O espírito incha e saltita desavergonhadamente. Metafísica, poesia - impertinências de um piolho..." Não é doce o Cioran...
CJ- Emil Cioran pode não ser nosso amigo/contacto no Facebook, mas existem quatro ou cinco páginas do Facebook dedicadas a ele... :) Ao ouvir este aforismo de Cioran pensei imediatamente em dois textos: 1. o livro de Job, em que Deus pergunta sobre quem "esvaziará os odres do céu" e o paradoxo de Epiménides (em que ele sendo um cretense nos diz qualquer coisa como "todos os cretenses são mentirosos"...:) Poderia - se assim quisesse - invocar o constante trabalho de análise crítica da filosofia sobre os limites do conhecimento; mas prefiro antes sublinhar que essa "ousadia" - titânica, prometeica -, constitui a própria dignidade de se ser humano.
TZ - Nesta época mais escura que obscura é esse ser humano, cuja dignidade vai parecendo ser mais luxo que outra coisa, bem de 6ª necessidade, que muitas vezes, para além do desespero de causa procura, ou gostaria de procurar, uma saída. Há alguma "voz amiga" que a reflexão filosófica possa oferecer, numa mensagem sintética para esse desespero, para esta escuridão? Alguma esperança filosófica concreta e transmissível para esta austera descrença?
CJ- A minha primeira tendência é dar uma resposta negativa. Schelling, para caracterizar a actividade filosófica, relembra a inscrição que Dante colocou à entrada do seu Inferno : "Vós que quereis entrar aqui abandonai toda a esperança". E acrescenta: "Quem quer verdadeiramente filosofar deve abandonar toda a esperança, toda a exigência e todo o desejo, é preciso nada querer, nada saber, sentir‑se inteiramente nu e pobre, tudo sacrificar para tudo obter. É difícil dar este passo, é difícil abandonar a margem." Utilizando uma linguagem menos poética, e como tal menos bela, a filosofia analisa os diferentes conceitos que atravessam as diferentes actividades humanas e é apenas motivada pelo amor à verdade, mesmo que esta seja dura e difícil. Mas esta análise pode, no limite, permitir um outro tipo de esperança e que é indiciado no quadro de Goya, "El sueño de la razón produce monstruos". Com efeito, a história multímoda da humanidade - pois não é única; são antes múltiplas histórias que se entrecruzam - tem mostrado que, tanto o sono da razão como a sua idealização excessiva, podem causar um sofrimento inútil, desnecessário, sem sentido. A razão filosófica é a razão desperta, i.e. a actividade intelectual humana em que, como nos disse Kant, "podemos prestar contas de todos os nossos conceitos, opiniões e afirmações." Não há lugar para qualquer dogmatismo, apenas o espírito livre que ama a verdade. E isso é intrinsecamente bom... Como são intrinsecamente boas outras actividades que não são filosóficas, mas que enchem a nossa alma de felicidade. Aqui a filosofia apenas nos pode indicar o caminho...
TZ - Se pudesse escolher 3 personalidades, de todos os tempos, para passarem, apenas os 4, um mês inteiro numa ilha deserta e paradisíaca (portanto não teriam de preocupar-se com inimigos de qualquer espécie), quem seriam os eleitos?
CJ- Shakespeare, para contar e representar histórias, Jacqueline du Pré, para se poder ouvir boa música (e dar-lhe oportunidade de uma vida paradisíaca que infelizmente não teve), e Platão que, ainda hoje, é o modelo da boa pedagogia (e é sempre bom aprender coisas novas mesmo numa ilha deserta...).
TZ - Alguma grande meta a que se proponha neste momento da sua Demanda e que possa partilhar connosco Professor?
CJ- É fácil de partilhar na medida em que estou convicto que a minha demanda é comum a todos os seres humanos. C.G. Jung, o psicólogo suíço, descrevia essa busca como sendo o processo de "individuação" [Individuation]. Ele definia-o como sendo "o processo através do qual uma pessoa se torna um "in-divíduo" [literalmente 'não-dividido] ", em que nos tornamos autónomos, sem que isso signifique uma dissociação da nossa relação com os outros. Mas, para que isso aconteça, é necessário uma reconciliação com múltiplas vertentes que consideramos, numa primeira análise, distantes ou negativas (na terminologia de Jung, a nossa "sombra"). Para o dizer numa só expressão, é crucial que eu percorra um longo caminho de auto-aceitação ou, se se preferir, de me tornar aquilo que sou. De algum modo, é uma demanda filosófica, pois se existe imperativo da filosofia é precisamente o "tornar-se aquilo que se é".
TZ - Nesse "longo caminho de auto-aceitação", não correremos o risco de encurtar a Demanda? Ou a auto-aceitação é uma rampa para alhures?
CJ- Se fizermos fé nas palavras do antropólogo americano Joseph Campbell, em particular na sua teoria do monomito, o retorno ao ponto de partida não anula o sentido, o interesse e as peripécias de um percurso, é antes a sua finalidade última. De algum modo, pode-se dizer que Homero também pensou o mesmo na Odisseia na ideia do retorno a Ítaca. Mas, se se quiser, pode-se dar um sentido mais zen a tudo isto... :) Contemplemos, a título de exemplo, o céu e a relva que nos rodeiam. Meditemos sobre essa realidade. Num primeiro momento, percepcionamos que a forma é forma e o vazio é o vazio, i.e. que a relva e o céu são entidades distintas e têm cores diferentes; num segundo momento, apreendemos que forma e vazio são o mesmo, i.e., assumimos a experiência do todo, em que deixa de ter sentido falar-se da relva independentemente do céu e deste último sem a relva; num terceiro momento, compreendemos que não existe nem a forma nem o vazio, que relva, céu e uno são meras palavras, descobrindo, assim, o silêncio da mente que contempla; mas, finalmente, re-conhecemos que a forma é forma e que o vazio é vazio. E, deste modo, podemos aceder à realidade tal como ela é, em que a relva é verde e o céu é azul. O primeiro e último momento podem parecer muito semelhantes, mas existe um mundo de diferenças entre eles.
TZ - Qual o sentido do veganismo? Afinal cada um tem ou não direito de comer o que quer?
CJ- Um dos princípios fundamentais das sociedades humanas, algo bem sublinhado pelos antropólogos, é a existência de regras alimentares em cada cultura. Todas as sociedades humanas - mesmo entre as comunidades de canibais - conhecem regras de interdição. Julgo que uma das mais importantes e racionais consiste em evitar o sofrimento e a morte de todos os que podem sofrer com os nossos actos. Quem são esses seres? Embora seja literalmente imprecisa, a resposta encontra-se indicada claramente na declaração de uma modelo alemã, afirmação que muito me impressionou: "não como nada que tenha olhos". Quem tem olhos tem um mundo que lhe é próprio e ninguém tem o direito de o destruir. Como diz o ditado hebraico, quem salva uma vida salva um mundo... e quem o mata?
TZ - E para terminar, não sem pena: alguma pergunta que gostasse especialmente que tivesse sido formulada?
CJ- Não tenho mais nenhuma. As questões foram excelentes. O meu obrigado pela atenção!

2 comentários:

Maria José disse...

Maravilhosa entrevista. Parabéns aos dois! E um especial obrigada a Carlos João. Pela sua rara sabedoria, como Ser-no-Mundo.

Tamborim Zim disse...

Muito obrigada!